O Itamaraty chamou, para consultas, o embaixador brasileiro na Nicarágua, Luís Cláudio Villafañe Gomes Santos. A decisão ocorre após a morte de uma universitária brasileira nessa segunda-feira (23) na capital Manágua. Hoje a embaixadora da Nicarágua no Brasil, Lorena Del Carmen, também foi convocada para prestar esclarecimentos. Ela esteve no Itamaraty em reunião com o subsecretário de América Central e Caribe, Paulo Estivallet.
A estudante brasileira Raynéia Gabrielle Lima foi morta, na noite de segunda-feira (23), com um tiro no peito que, segundo o reitor da Universidade Americana (UAM), Ernesto Medina, foi disparado por um "um grupo de paramilitares" no sul da capital Manágua.
Mais cedo, o governo brasileiro já havia manifestado indignação e exigido que autoridades nicaraguenses mobilizem todos os esforços necessários para identificar e punir os responsáveis pelo assassinato da estudante. No texto, o governo ainda condenou “o aprofundamento da repressão, o uso desproporcional e letal da força e o emprego de grupos paramilitares em operações coordenadas pelas equipes de segurança” e repudiou a perseguição a manifestantes, estudantes e defensores dos direitos humanos.
Crise
A Nicarágua vive uma crise sociopolítica com manifestações que se intensificaram, desde abril, contra o presidente Daniel Ortega que se mantém há 11 anos no poder em meio a acusações de abuso e corrupção. A repressão aos protestos populares já deixou entre 277 e 351 mortos, de acordo com organizações humanitárias locais e internacionais.
O assassinato da estudante brasileira ocorreu horas depois de Medina participar de um fórum no qual disse que o crescimento econômico e a segurança na Nicarágua antes da explosão dos protestos contra Ortega em abril "era parte de uma farsa" porque "nunca houve um plano que acabasse com a pobreza e a injustiça".
Em entrevista a uma emissora de TV local, o retior da UAM acrescentou que as forças paramilitares “sentem que têm carta branca, ninguém vai dizer nada a eles, ninguém vai fazer nada. Eles andam sequestrando e fazendo batidas".
O governo de Daniel Ortega foi acusado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Acnudh) pelos assassinatos, maus tratos, possíveis atos de tortura e prisões arbitrárias ocorridas em território nicareguense.
Recomendações
Desde o início da crise no país, o Ministério das Relações Exteriores orienta que brasileiros não viajem ao país. Se a viagem for inevitável, o Itamaraty sugere as seguintes recomendações:
- Evite participar e aproximar-se de manifestações;
- Evite deslocamentos desnecessários. Caso seja necessário fazer um deslocamento, esteja acompanhado ou passe por vias com policiamento;
- Manter em dia e válido o passaporte para uma eventual saída emergencial do país;
- Carregue sempre uma cópia do passaporte ou de um documento de identificação válido. Mantenha uma cópia também no correio eletrônico;
- Avise pessoas próximas (parentes e amigos) sobre a localização e meios de comunicação;
- Evite viajar para o interior do país e o deslocamento por estradas para fora da capital, que têm sido bloqueadas por criminosos armados.
Quem é Daniel Ortega
O presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, é uma figura central nas últimas quatro décadas no país --seja como líder revolucionário, como presidente ou como opositor.
Alinhado à esquerda e de orientação marxista-leninista, Ortega, 72, já foi presidente em outras duas ocasiões. Em 2016, venceu seu terceiro mandato consecutivo --não há limite para a reeleição na Nicarágua.
Líder da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), comandou as ações que resultaram na derrubada do governo de Anastasio Somoza Debayle, em 1979.
A OEA (Organização dos Estados Americanos) e a Anistia Internacional, já se manifestaram contra a crescente violência e pediram que o presidente busque um diálogo com os opositores.
Ortega comandou o país até 1990, quando foi derrotado nas urnas. Voltou ao poder em 2007, depois de se reinventar como um perfil socialista mais moderado e fazer um aceno a grandes empresas --um movimento semelhante ao realizado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil em 2002, com a Carta aos Brasileiros. Em seguida, Ortega aproximou-se também da Igreja Católica.
Lula, seu partido, o PT, e outros da linha da esquerda como PCdoB, dentre outros, sempre deram apoio a Daniel Ortega.
Tanto Lula quanto o presidente nicaraguense fizeram a transição após governos de cunho liberal. "A ideia do 'poder cidadão', com propostas de inclusão e igualdade social, visava promover um chamado 'desenvolvimento humano estrutural', a médio e longo prazo, superando a pobreza e sustentando um crescimento com transformações na organização do país", afirmou o historiador Fred Maciel, membro do Grupo de Pesquisa Intelectuais e Política nas Américas da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
Ele também aponta que o investimento em programas sociais, alguns inspirados em casos de sucesso brasileiros, foram relevantes para ele se manter na Presidência.
"Programas sociais foram aplicados e mantidos como base em todos os mandatos de Ortega. Alguns foram inspirados em exemplos como o Hambre Cero (Fome Zero) e o Casas para el Pueblo (similar ao Minha Casa, Minha Vida)", diz. "A atenção dada aos setores populares provou ser um instrumento relevante para o regime de Ortega."
Esse aparente clima favorável foi rompido quando manifestantes foram às ruas e houve uma reação do governo.
Foi quando Ortega usou a polícia e grupos paramilitares, chamados de "parapolícia", que são milícias formadas por policiais à paisana, integrantes de gangues e da Juventude Sandinista. "Corpos policiais e paramilitares são a base da força repressiva de Ortega", afirma o historiador Fred Maciel.
Houve mortos dos dois lados: 360 do lado dos rebeldes contra 20 policiais.
O banho de sangue na Nicarágua supera a forte repressão realizada, no ano passado, pelo ditador Nicolás Maduro contra os opositores que tomaram as ruas da Venezuela. Confrontos com forças da Guarda Bolivariana e milícias chavistas deixaram entre 120 e 157 mortos entre março e agosto de 2017 --os números variam de acordo com a origem dos dados: a contagem mais baixa vem do Ministério Público controlado pelo governo e a mais alta por lideranças oposicionistas.
Governo nepotista e autoritário
Ortega e sua mulher, a também vice-presidente Rosario Murillo, afirmam que estão somente mantendo a ordem contra uma tentativa de golpe apoiada pelos EUA. Rosario, 67, ocupou diversos cargos oficiais durante os três mandatos consecutivos de seu marido e hoje é considerada o rosto do governo de Ortega. O próprio ex-guerrilheiro já afirmou que a Presidência do país é exercida 50% por ele, 50% por ela.
Desde que assumiu o poder, Ortega atuou na consolidação de sua autoridade, controlando a Suprema Corte, a Assembleia Nacional e o Conselho Eleitoral. Sua família também controla oito dos nove canais de televisão aberta do país.
"O trato clientelista, aliado a uma espécie de sistema de controle social e vigilância que busca suprimir descontentamentos e dissidências, minimiza o aparecimento de novas lideranças e de atores sociais, acentuando uma fraca institucionalidade democrática e diminuindo ainda mais as possibilidades de um amplo consenso social", analisa Fred Maciel.