Em nenhum país entre as chamadas democracias maduras ou exemplares, existe a figura grotesca da fidelidade partidária obrigatória ou coercitiva. Os partidos são sólidos, mas a adesão ou permanência é espontânea e não existem sanções legais contra casos de transgressão da disciplina partidária. Quando muito alguma mudança de status. Na Inglaterra, por exemplo, se um deputado vota contra a orientação partidária ele é discretamente passado para trás e vai, pouco a pouco, para os “back benches”. Nos Estados Unidos, o insubmisso pode ter os seus pleitos ignorados ou postergados pelo líder. Mas ninguém vai para o pelourinho; ninguém é crucificado de cabeça para baixo e, sobretudo, ninguém perde o mandato, mesmo em caso de mudança de partido.
Nada obstante, ninguém muda de partido, naqueles países. Ou pelo menos, são raríssimos os casos de defecção. Porque o parlamentar ou detentor de qualquer mandato eletivo sabe que isto há de ser fatal para sua carreira política. A chance de não se reeleger é próxima de 100%. Ele será punido pelo eleitor, pela militância ou pelo inconsciente moral coletivo, no pleito imediato.
No Brasil, sob a Carta de 46, também não havia lei de fidelidade partidária. Ainda assim, o trânsito entre UDN e PSD, os dois maiores partidos da época, era praticamente nulo. E quando acontecia, as conseqüências eram esperadas apenas na boca da urna.
Não por acaso, a fidelidade partidária foi inventada no Brasil pela ditadura militar.
A Constituição cidadã de 1988 expurgou tal instrumento e estabeleceu apenas que os estatutos devem conter normas de disciplina partidária. O seu artigo 55, que trata dos casos de perda de mandato, não elenca a infidelidade partidária entre as causas; e o artigo 25 da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, quando trata de indisciplina, fala em perda de cargos ou funções partidárias e, jamais, em perda de mandato eletivo – muito menos, em perda automática, isto é, sem o devido processo legal.
Tal exorbitância, sobre carecer de legitimidade, ainda envolve um risco altíssimo (para não dizer certeza), de cristalização de ditaduras partidárias, com eliminação da liberdade de pensamento e a transformação dos representantes do povo em autômatos controlados por uma troika gremial.
Existe na sociologia política uma lei – a chamada Lei de Bronze das Oligarquias, estabelecida pelo alemão Michels, em 1905 – que diz: “todo partido político, seja ele de quadros ou de massa, tende a ser controlado por uma oligarquia que se perpetua e se eterniza no poder e o controla com mão de ferro”. Ao colocar aquele entendimento, como um porrete, nas mãos dos donos de partido, os tribunais multiplicaram por mil a sua capacidade de intimidar, discriminar, e eventualmente trucidar descontentes. Que não podem sequer pedir para sair.
Creio que estamos chegando ao cerne da questão: quem muda de partido no Brasil em geral o faz por alguma incompatibilidade desenvolvida na seqüência de movimentos inesperados da cúpula (alianças espúrias, desnaturação programática, exclusão, veto, manipulação, hostilidade pessoal) e não necessariamente para auferir benefícios, como o nosso preconceito pode fazer supor.
Se se pretende que a fidelidade seja uma categoria absoluta, há que rever todo o sistema eleitoral, proibindo-se as coligações e eventualmente introduzindo-se o voto distrital. Caso contrário, é aceitar a infidelidade como natural, inevitável ou inerente ao modelo e descriminalizá-la.
*Marcondes Gadelha é deputado federal pelo PSB da Paraíba.
mailto:dep.marcondesgadelha@camara.gov.br.